VERDADE GOSPEL
realizado sua pesquisa em Sodoma...
Conta
o livro de Gênesis que os moradores de Sodoma e Gomorra eram maus e
profundamente pecadores. Esse pecado adquiriu tal gravidade na época de
Abraão que Deus, em um evento único em toda a Bíblia, decidiu destruir
inteiramente aquelas cidades[i].
Diz a narrativa:
“Então
o Senhor fez chover enxofre e fogo sobre Sodoma e Gomorra – do Senhor
desde o céu. Subverteu, pois, aquelas cidades, e toda aquela planície, e
todos os moradores daquelas cidades, e o que nascia da terra.
(Gênesis 20.25)
Há
constantes referências na Bíblia a este evento, que alertam para a sua
destruição repentina e total. A iniquidade em Sodoma era tal que os seus
moradores não tinham pudor de pecar em público: “não os dissimulam” (Isaías 3.9).
Contudo, que pecado tão grave era esse?
A Bíblia não descreve que pecado era esse.
Mas era algo que tinha atingido níveis graves no momento em que Deus anuncia a Abraão a sua iminente destruição.
“O
clamor de Sodoma e Gomorra tem se multiplicado tanto, e o seu pecado se
tem agravado de tal maneira que descerei, e verei se de fato o que têm
praticado corresponde a esse clamor que é vindo até mim. Se não,
sabê-lo-ei.”
(Gênesis 18.20-21).
A sodomia
Para dezenas de gerações que nos precederam – e também alguns pregadores atuais – o pecado de Sodoma era bastante específico: a sodomia.
Quando
Deus anunciou a destruição de Sodoma, Abraão intercedeu por Ló, seu
sobrinho, que habitava na cidade. Deus então enviou dois varões (que
eram anjos) à cidade, e estes foram recebidos na casa de Ló. À noite,
porém, os moradores (“os homens de Sodoma, desde o moço até o velho”) cercaram a casa e exigiram que Ló entregasse os visitantes (“traze-os para fora, para que os conheçamos”).
Na condição de hospedeiro, Ló não aceitou e até ofereceu suas duas
filhas para os moradores, mas eles não quiseram e agrediram Ló, forçando
a porta da casa.
Então os dois anjos “feriram
de cegueira os homens que estavam do lado de fora, desde o menor até o
maior, de modo que se cansaram de procurar a porta” (Gênesis 19.4-11).
Segundo
o dicionário Houaiss, a primeira vez em que foi utilizado o termo
sodomia foi no século XII, referindo-se ao coito anal e, por figuração, a
relação homossexual[ii]. Os navegadores espanhóis relatam que os nativos das Antilhas e da Flórida eram ‘sodomitas’[iii],
ou seja, em algumas ocasiões os marinheiros presenciaram indivíduos do
sexo masculino praticando o coito, o que parece que não condenável em
algumas culturas da América pré-colombiana.
Na passagem do século XV para o século XVI, na Itália, o pintor renascentista Giovanni Antonio Bazzi (1477-1549) “levava
uma vida licenciosa e vil; como estava sempre cercado de meninos e
jovens imberbes, dos quais gostava de maneira fora do comum”[iv].
Apesar de seu estilo de vida excêntrico – sua casa era cheia de animais
exóticos – e sua evidente homossexualidade e pedofilia, Bazzi era um
artista criativo, com temática religiosa e trabalhou sucessivamente para
dois papas, Júlio II e Leão X. Seu apelido: Il Sodoma.
A
identificação de Sodoma com a homossexualidade (ou, ao menos, a certas
práticas associadas a ela) tornou-se tão forte que algumas versões da
Bíblia traduziram em 1Reis 15.12[v] como ‘sodomitas’ para se referir aos que praticavam a prostituição de santuário (os effeminatos, segundo a Vulgata) e foram expulsos pelo rei Asa. Ainda hoje há intérpretes tradicionalistas que
consideram que a substituição de termo ‘sodomitas’ por outros mais
preocupados com o caráter ritual dessa prática como uma forma de
legitimar biblicamente o homossexualismo, cortando a sua relação com o
pecado de Sodoma.
Contudo, a palavra traduzida como ‘sodomitas’[vi]
(tanto no AT quanto no NT) não guarda nenhuma alusão a Sodoma e,
portanto, essa é uma leitura dos séculos XVII e XVIII e não uma memória
que associe o pecado de Sodoma aos qedeshim dos templos.
O verbo ‘conhecer’
Na
direção oposta, outros comentadores bíblicos afirmam que o pecado de
Sodoma nada tem a ver com a homossexualidade – ao menos, com a
homossexualidade “com amor e responsabilidade”.
Don Eastman (recentemente falecido), bispo das Metropolitan Community Churches,
lembrando que o anúncio do juízo sobre aquelas cidades se deu antes do
incidente na casa de Ló, sustentou que o verbo ‘conhecer’ (Gen 19.5)
pode fazer alusão a um outro sentido que não o sexual:
“Poderia
também expressar a intenção de examinar as credenciais dos visitantes
ou, como em raras ocasiones, o termo implicaria um contato sexual. Se
fosse este último o significado intencional do autor, trataria-se de uma
clara intenção de violação coletiva”.[vii]
Além disto, sustenta Eastman, diante da casa de Ló se ajuntaram todos os moradores de Sodoma (“desde o moço até o velho”,
segundo Gen 19.4). Então, considerando que em todas as culturas humanas
os homossexuais são apenas uma minoria, seria impossível que todos eles
fossem homossexuais. Logo não era esse o pecado de Sodoma.
Inconsistências
1. A possibilidade de o verbo yadah, “conhecer” (Gen 19.5: “Onde estão os homens que entraram esta noite na tua casa? Traze-os cá fora a nós para que os conheçamos”)
fazer alusão a um outro sentido que não o sexual é traída pelo próprio
Eastman, que tentou (no mesmo texto, logo depois) justificar que talvez
os moradores que cercaram a casa não fossem homossexuais pelo fato de Ló
ter tentado dissuadi-los de seu intento – aliás, sem sucesso –
oferecendo suas próprias filhas a eles (Gen 19.8).
Portanto, a conotação do verbo conhecer nessa passagem é, sem dúvida, sexual, e que nada tinha a ver com ‘examinar as credenciais de visitantes’ ou expô-los a uma humilhação pública.
2.
É evidente que nem todos os moradores de Sodoma eram homossexuais – ao
menos, os genros prometidos às filhas de Ló seguramente não o eram
(embora se possa dizer também que eram estrangeiros na cidade).
Contudo, quando houve uma tentativa de se abusar violentamente dos dois visitantes, todo o povo se juntou diante da casa de Ló (“desde o moço até o velho; todo o povo de todos os lados”).
3.
Ao tentar enfatizar a recusa dos moradores pelas filhas de Ló, Eastman
se prendeu muito a um conceito da homossexualidade como um comportamento
inteiramente incompatível com qualquer desejo heterossexual.
Não é essa a opinião dos especialistas no assunto, desde a polêmica publicação da escala Kinsey de comportamento sexual (1948)[viii]. A homossexualidade não exclui necessariamente o desejo heterossexual. Apenas um tipo de comportamento rejeita inteiramente o contato com o sexo oposto.
Uma
leitura atenta do texto, porém, nos mostra que o que acendeu a ira dos
habitantes foi a tentativa de Ló, sendo estrangeiro na cidade,
levantar-se como protetor dos dois visitantes, rompendo alguma ‘regra’
de recepção em Sodoma: “agora te faremos mais mal a ti do que a eles” (Gênesis 19.9).
Algumas
gerações mais tarde, o mesmo caso de Sodoma voltou a se repetir em
Gibeá, porém, entre os próprios filhos de Israel (Juízes 19.12-30) e,
desta vez, os sitiantes (‘filhos de Belial’) aceitaram a mulher, abusaram dela e acabaram matando-a. Esse crime horrendo (“Que maldade é essa que se fez entre vós?”) provocou a ira de todas as tribos contra Benjamim, quase exterminando aquela tribo.
O pecado da inospitalidade
Não
podemos afirmar, seguindo uma leitura atenta do texto bíblico (e em
conformidade com o princípio da onisciência divina), que Deus não
conhecia qual era o pecado dos habitantes de Sodoma.
Contudo,
alguns comentadores pretenderam ter encontrado o pecado de Sodoma na
‘inospitalidade’ dos seus moradores, sem qualquer alerta sobre a
imoralidade sexual. E apresentam como justificativa o seguinte
comentário do próprio Cristo:
“E
tu, Cafarnaum, erguer-te-ás até os céus? Serás abatida até o inferno.
Se em Sodoma tivessem sido feitos os milagres que em ti operaram, ela
teria permanecido até hoje. Porém, eu vos digo que haverá menos rigor
para os de Sodoma, do que para ti.”
(Mateus 11.23-24)
É do mesmo teor o comentário em Sabedoria 19.13-17.
Teria sido a ‘inospitalidade’ o pecado de Sodoma?
É
claro que não foi esse o motivo que fez o Senhor anunciar o juízo sobre
Sodoma e Gomorra. A missão dos varões em Sodoma (além de salvar Ló) era
criar uma situação em que os moradores seriam ‘pegos no laço’, tentando
violar (sexualmente) os visitantes sem saber que eram mensageiros de
Deus. É evidente que essa intenção é que motivou a violação.
Procurar
outras explicações para o pecado de Sodoma seria fazer uma leitura
secundária dos motivos que levaram à destruição de Sodoma e desprezar,
por exemplo, o que diz a carta de Judas:
“Assim
também Sodoma e Gomorra, e as cidades circunvizinhas que, havendo-se
prostituído como aqueles, e ido após outra carne, foram postas como
exemplo, sofrendo a pena do fogo eterno. Contudo, semelhantemente também
estes falsos mestres, sonhando, contaminaram a sua carne, rejeitaram
toda a autoridade, e blasfemaram das dignidades”.
(Judas 7 e 8)
Quando
Jesus comparou Cafarnaum a Sodoma, não estava se referindo apenas (e
nem principalmente) à inospitalidade, mas à falta de piedade e
arrependimento que as cidades da Galileia demonstraram diante da
operação de milagres naquelas cidades. Isaías seguiu o mesmo critério
quando chamou os poderosos de Judá por ‘Sodoma’, e o povo, por ‘Gomorra’
(Isaías 1.9-10).
Em
relação a Corazim e Betsaida (que igualmente se mostraram
‘inospitaleiras’ a Jesus), Cristo também comparou a outras duas cidades,
Tiro e Sidon, cujo pecado é bem melhor conhecido: o sacrifício de seus
próprios filhos no fogo!
Apesar
desse costume de ‘receber’ os visitantes possa ser muito comum no
Oriente Próximo antigo, não há nenhuma que o juízo sobre Tiro e Sidon
tenha se dado pela maneira brutal de tratar como a dos moradores de
Sodoma ou de Gibeá.
A falácia do pecado material
Eastman evoca a leitura do livro de Ezequiel para tentar demonstrar que a iniquidade de Sodoma não era sexual, e sim material:
“Tão certo como eu vivo, diz o Senhor Deus, não fez Sodoma, tua irmã, ela e suas filhas, como fizeste tu e tuas filhas. Ora, foi esta a maldade de Sodoma, tua irmã: soberba, fartura de pão, e abundância de ociosidade teve ela e suas filhas, mas nunca amparou o pobre e o necessitado.”
(Ezequiel 16.48-49)
Em
uma leitura que cai bem à esquerda religiosa, Eastman concluiu que o
pecado de Sodoma estava na insensibilidade social, sem qualquer relação
com a atitude sexual: “os
habitantes de Sodoma, como muita gente hoje em dia, tinham abundância de
bens materiais, porém não se solidarizavam com as necessidades dos
pobres e adoravam ídolos”.
Portanto,
se Sodoma deve ser comparada com alguém hoje em dia, essa comparação
recaiu sobre o conjunto sociedade com sua injustiça em relação aos
pobres, e não a declínio moral dessa mesma sociedade.
Essa interpretação seria muito boa se Ezequiel estivesse se referindo a Sodoma.
Mas
não estava. O capítulo 16 do livro de Ezequiel faz uma alegoria de duas
irmãs (Samaria e Jerusalém). Ambas tem a mesma mãe (os cananeus?) , mas
a primeira (Samaria, ou seja, Israel) não cometeu nem metade dos
pecados da segunda (Ezequiel 16.51), que é Judá.
Ezequiel
não está se referindo realmente à Sodoma, e sim fazendo uma comparação
dos efeitos do seu pecado (que, no caso de Judá, não eram imorais do
ponto de vista sexual, mas material). Somente uma leitura
descontextualizada encontraria aí uma definição simples do pecado de
Sodoma.
O livro faz questão de enfatizar que Jerusalém não cometia os mesmos pecados, mas outros que igual juízo da parte de Deus:
“Todavia
não andaste nos seus caminhos, nem fizeste conforme as suas
abominações; mas, como se isto fosse muito pouco, ainda te corrompeste
mais do que elas, em todos os seus caminhos”
(Ezequiel 16.47)
Para
Ezequiel, o pecado dos seus contemporâneos era ainda mais grave que o
de Sodoma, porque Jerusalém já tinha conhecimento dos mandamentos de
Deus e, ao violá-los, cometera abominações ainda piores que aquelas que
levaram Sodoma à destruição.
Essa mensagem pode ser bem resumida em uma frase: “quanto maior é a benção que se recebe, mais se exige em troca”.
Conclusão
É
comum que pregadores bíblicos lembrem de Sodoma e Gomorra como alerta
de destruição contra o comportamento da sociedade ou de pequenos grupos
(no caso mais comum, os homossexuais), o que fornece um motivo ‘divino’
para ataques ou desastres naturais.
Mas
também é comum que outros pregadores retirem qualquer conotação sexual
do pecado de Sodoma e atribuam a sua iniquidade a comportamentos
políticos ‘modernos’ (restrição a imigrantes ilegais ou a falta de
políticas de bem estar social, por exemplo).
Ambas
as interpretações são exemplos de análises falhas, que não levam em
conta a narrativa bíblica em todo o seu contexto. Alguns ‘métodos de
interpretação’ não fornecem critérios imparciais e atendem a uma agenda
de interesse (seja ela anti-homossexual, seja ela pró-homossexual), que
não leva em conta o valo da Bíblia como Palavra de Deus.
Esses
comentadores parciais se comportam de maneira irresponsável, usando ora
de leituras (mal) contextualizadas, ora de interpretações literais,
para moldar a Escritura aos seus próprios pontos de vista.
O pecado de Sodoma não é um mistério. A Bíblia nos fornece indicações claras sobre ele:
1. Era um pecado de natureza sexual.
Essa compreensão, quando realmente faz referência a Sodoma (e não a uma
metáfora), deixa claro a natureza essencialmente sexual do pecado que
elevou seu clamor até Deus. A punição é um exemplo aos que vivem de
maneira ímpia.
O próprio Ló, como se lê em 2Pedro 2.7, vivia “atribulado pela vida dissoluta daqueles perversos”.
2. Era um pecado público.
Os moradores de Sodoma não escondiam dos demais a sua vida pecaminosa.
Quando tentaram violar a casa de Ló, todos se juntaram nessa tentativa,
entendendo que o estupro dos visitantes era uma prioridade, mesmo que o
intercurso com eles não fosse prática de todos.
3. Não era o homossexualismo.
Mesmo que o objetivo da violação fosse um estupro homossexual, nenhuma
referência posterior na Bíblia à homossexualidade (ritual ou não, com
fim de prostituição ou não) está a associada a Sodoma. O uso do termo
‘sodomita’ com o significado de homossexual é aberrante.
4. Não era a desigualdade social.
A interpretação que lê em Ezequiel como sendo o pecado de Sodoma o
desamparo aos necessitados é um primor de duplicidade de critérios para
se ler a Bíblia. Ezequiel se refere apenas a Judá.
5. O pecado de Sodoma tinha contornos extremamente violentos.
Os moradores de Sodoma – assim como os de Gibeá – intentaram uma ação
brutal contra Ló e os enviados de Deus. Esse desfecho está relacionado
com a natureza do pecado de Sodoma. Não foi um incidente secundário. A
intenção de Deus em enviar seus anjos à cidade (“verei se de fato o que têm praticado corresponde a esse clamor que é vindo até mim”) foi realmente ver até que ponto os sodomitas – agora podemos chamá-los assim – poderiam chegar.
Sodoma
e Gomorra não existem mais. Sua rebeldia contra o Senhor – manifestada
em uma imoralidade sexual extrema – foi o caminho que levou à sua
destruição. Vez por outra alguém vê por aí uma nova Sodoma, uma nova
Gomorra, para dar uma vestimenta bíblica às suas próprias condenações
morais ou a agendas políticas suspeitas.
Mas
um castigo especial aguarda pelos ‘sodomitas’ de qualquer época, e
terão que prestar conta tanto do pecado que praticam quanto pelos que
levam outros a fazer.
“Se
condenou à destruição de Sodoma e Gomorra, reduzindo-as a cinza, e
pondo-as para exemplo aos que vivessem impiamente; e se livrou ao justo
Ló, atribulado pela vida dissoluta daqueles perversos (...) Deus
castigará especialmente aqueles que segundo a carne andam em imundas
concupiscências, e desprezam as autoridades. Atrevidos, arrogantes, não
receiam blasfemar contra as dignidades”.
(2Pedro 2.6-7,10)
Posted 29th January 2011 by O investigador